Após 100 anos de branqueamento, o Brasil retratará a deusa Iemanjá como negra

BEATRIZ MIRANDA

FOTO: CORTESIA DE CRISTIAN CARVALHO.

Todo dia 2 de fevereiro, a cidade de Salvador no Brasil celebra Iemanjá , divindade do mar e da maternidade, que é a deusa iorubá mais venerada do país. Durante esta comemoração em 2016, enquanto centenas de milhares de devotos rezavam a este orixá em uma festividade de horas que acontece sempre na orla do bairro do Rio Vermelho, Cintia Maria, frequentadora assídua, sentiu-se profundamente incomodada.“O alto número de representações de Iemanjá de pele branca me chamou a atenção. Eu pensei, ‘como é que, no século 21, não aceitamos que uma divindade africana é negra’”, lembra Maria ao Refinery29 Somos.Neste dia 2 de fevereiro, Maria, produtora cultural, e sua companheira de trabalho Jamile Coelho, cineasta, esperam que o histórico embranquecimento de Iemanjá não passe mais despercebido. Ambas as mulheres negras dirigem o Museu da Cultura Afro-Brasileira de Salvador (MUNCAB), e com o ano de 2023 marcando o centenário do Dia de Iemanjá em Salvador, a MUNCAB produziu, pela primeira vez, uma escultura de Iemanjá negra, presenteada à colônia de pescadores do Rio Vermelho ( onde fica o altar de Iemanjá) para a festa. “

“Como é que, no século 21, não aceitamos que uma divindade africana é negra?”CINTIA MARIA”Feita de metal, mármore, resinas de vidro e conchas importadas da Indonésia, a escultura meio mulher, meio peixe resgata a Negritude de Iemanjá — uma deusa que, apesar de suas origens africanas, foi caiada ao longo da história brasileira. Em Salvador, os brasileiros começaram a comemorar o Dia de Iemanjá em 1923, quando pescadores desta cidade nordestina, considerada a mais negra fora da África, começaram a oferecer presentes à deusa do mar para exigir abundância de peixes. A festividade ganhou popularidade nas décadas seguintes, especialmente entre 1930 e 1950.

Lemanjá
FOTO: CORTESIA DE CRISTIAN CARVALHO.

“O aumento do interesse de pesquisadores estrangeiros, [como o fotógrafo francês Pierre Verger e a antropóloga americana Ruth Landes], e de artistas brasileiros, [como o músico Dorival Caymmi e o romancista Jorge Amado], pela cultura afro-baiana, e a consequente mudança na [racista] da mídia local, ajudou a tornar a festa de Iemanjá um evento turístico atraente”, diz Sarah Nascimento, Ph.D., professora de antropologia que se concentra em relações raciais brasileiras na Universidade Federal da Bahia.Embora a divindade seja celebrada em todo o país, a festa de Iemanjá de Salvador continua sendo a mais famosa, com até um milhão de pessoas participando todos os anos.“

“É a mãe que luta pelos filhos, a mãe que sustenta e alimenta o mundo onde quer que esteja, seja qual for a sua forma e imagem.”VILSON CAETANO”De acordo com Vilson Caetano, um antropólogo que foi trazido para o projeto para compartilhar sua visão especializada para a produção da escultura, existem muitas razões pelas quais Iemanjá não é apenas o orixá mais popular no Brasil, mas em todas as Américas, onde ela é chamada de Yemayá em países de língua espanhola como Cuba, Porto Rico e República Dominicana.Além de ser uma orixá cuja seita, originária do Império Yoruba de Oyo na Nigéria , chegou às Américas no século XVI devido ao fluxo transatlântico da escravidão, Iemanjá representa “a mãe de todos”. “É a mãe que luta pelos filhos, a mãe que sustenta e alimenta o mundo onde quer que esteja, seja qual for a sua forma e imagem”, diz Caetano ao Somos.

Lemanjá
FOTO: CORTESIA DE CRISTIAN CARVALHO.

Com o domínio histórico do catolicismo na sociedade brasileira colonizada pelos portugueses, os africanos escravizados e seus descendentes passaram a associar Iemanjá às aparições da Virgem Maria. “Foi uma estratégia de resistência das populações negras escravizadas para preservar suas tradições”, diz Maria, presidente da MUNCAB.Mas a perseguição sancionada pelo Estado às religiões afro-diaspóricas não terminou com a escravidão. Nascimento observa que “só a partir da década de 1970 é que os terreiros de candomblé não precisam mais de autorização policial para realizar atividades religiosas”. Ainda assim, persiste o embranquecimento dos orixás negros: santos de aparência européia, como Nossa Senhora dos Navegantes e Nossa Senhora da Luz, muitas vezes são entendidos como “sinônimos” de Iemanjá, e suas imagens prevalecem sobre a representação de Iemanjá negra. “

“Quando as pessoas começarem a aceitar que uma deusa africana é negra, teremos dado um grande passo em direção à igualdade racial.”CINTIA MARIA”Embora o sincretismo religioso tenha desempenhado um papel quando as divindades africanas foram perseguidas e criminalizadas pelo Estado, Maria acredita que a continuação do sincretismo nos dias atuais está prestando um péssimo serviço aos negros brasileiros e ao movimento antirracista do país . Por exemplo, de todas as imagens de Iemanjá que os devotos levam para a festa de 2 de fevereiro no Rio Vermelho, a grande maioria imita Nossa Senhora dos Navegantes. “Quem se beneficia da massificação de uma representação de Iemanjá branca e de cabelos lisos”, questiona Maria.

Lemanjá
FOTO: CORTESIA DE CRISTIAN CARVALHO.

Por isso ela e Coelho trabalharam para produzir a escultura Iemanjá Negra para a comemoração do centenário. Na contagem regressiva para o 100º Dia de Iemanjá em Salvador, Rodrigo Siqueira, artista plástico que realizou a escultura, destaca a importância simbólica da iniciativa da MUNCAB.“Poder contar com referências negras nos espaços públicos de Salvador proporciona representatividade, tanto para os moradores quanto para os turistas, que buscam vivenciar a real história deste lugar. Também eleva os negros e negras devotos de Iemanjá”, conta Siqueira ao Somos.Para Maria, a festa de Iemanjá simboliza a celebração da resistência da cultura negra. A nova escultura, da mesma forma, representa a afirmação da identidade negra de Iemanjá.“O fato de Iemanjá ser negra deveria ser redundante. Mas a crueldade do racismo faz com que as pessoas o questionem”, diz ela. “Quando as pessoas começarem a aceitar que uma deusa africana é negra, teremos dado um grande passo em direção à igualdade racial.”

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